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Transnordestina – enquanto o trem não passa: sede e injustiças

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Imagina você passar sua vida toda sofrendo com falta de água, sem energia elétrica, estar a anos-luz de muitos benefícios sociais e, nas proximidades de sua casa, passar a mais importante e cara obra atualmente em execução no Nordeste. Imagine, mais ainda, que essa obra, tida como um dos carros-chefe do desenvolvimento do Piauí, complica mais e mais a sua vida?

São esses dramas que centenas de famílias de moradores do Sertão do Piauí estão passando em várias cidades do estado. Eles têm propriedades, casas e, principalmente, suas vidas cortadas pela Transnordestina. A ferrovia é a obra que promete ser o redentorismo econômico da região do Cerrado piauiense. Para a região do Sertão, em que os trens da ferrovia um dia passarão, por enquanto sobra muita dor de cabeça e polêmica.

O que tem passado essas famílias? Elas estão sendo assistidas? Como estão suas rotinas? Por que um dos moradores que teve terras transpassadas pela ferrovia ganhará só R$ 8,57 (você não leu errado, não são oitocentos e cinquenta e sete, mas sim: oito reais e cinquenta e sete centavos)? O que pensam as famílias que terão de andar quilômetros para chegar do outro lado das terras? Como será afetado a vida dos estudantes? O que ocorrerá com as famílias desalojadas? E o que está sendo feito para que o impacto social da importante obra seja minimizado?

Preocupação dos sertanejos que terão ferrovia quase passando na porta de casa. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

Foi em busca dessas respostas que a reportagem de O Olho há dois meses acompanha polêmicas da obra que se estende há mais de cinco anos e traz consigo uma série de pontos nebulosos.

O último final de semana culminou com a maior de todas as manifestações populares para refletir os impactos sociais da Transnordestina no Sertão do Piauí. Centenas de moradores da região de São Francisco de Assis do Piauí (a 500 quilômetros de Teresina) se reuniram para protestar e cobrar providências sobre os prejuízos sociais e econômicos trazidos pela ferrovia. As manifestações visaram formar comitês populares para refletir os impactos da obra.

O QUE SERÁ A TRANSNORDESTINA?

A Transnordestina, também denominada “Nova Transnordestina”, é uma ferrovia que ligará os Cerrados piauienses, a partir da cidade de Elizeu Martins (a 494 quilômetros de Teresina) até os portos de Pecém, em São Gonçalo do Amarante, Ceará, e Suape, em Cabo de Santo Agostinho e Ipujuca, Pernambuco. Foi concebida para exportar riquezas dos interiores piauiense, cearense e pernambucano para o Mundo.

A ferrovia terá uma extensão de 1.728 quilômetros e cortará os sertões do Piauí, Ceará e Pernambuco a um custo de obras estimado e corrigido para este ano em mais de R$ 6.500.000.000,00 (isso mesmo: seis bilhões e meio, correspondente a quase 30% do PIB anual piauiense). Segundo a CSN, empresa privada responsável por uma parte do projeto, cada quilômetro da ferrovia custa, em média, quase R$ 3 milhões.

Transnordestina: obras aceleradas em parte do Piauí. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

A Transnordestina é uma obra do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – sendo financiada pelo Governo Federal para ser operada por empresas privadas (as famosas PPPs – Parcerias Público-Privadas). A responsável por tocar o projeto é a TLSA – Transnordestina Logística Sociedade Anônima.

A obra, que teve início em 2006, era prevista para ser entregue em 2016. Mas o Governo Federal já anunciou que ela não começa a funcionar antes de 2018.

No Piauí a Ferrovia cortará áreas de 19 municípios em um trecho de 426 quilômetros, entrando em Simões e chegando até Elizeu Martins. Ainda passará (pela ordem Oeste-Leste) em Curral Novo do Piauí, Betânia do Piauí, Paulistana, São Francisco de Assis, Campo Alegre do Fidalgo, Nova Santa Rita, Bela Vista do Piauí, Simplício Mendes, Paes Landim, São Miguel do Fidalgo, São José do Peixe, Ribeira do Piauí, Pajeú do Piauí, Flores do Piauí, Itaueira, Rio Grande do Piauí e Pavussu. Desses, segundo o Governo do Piauí divulgou este final de semana, 15 quilômetros estão prontos.

Enquanto não é concluída a ferrovia, ainda faltando outros 96,5% em território piauiense, as obras continuam envoltas a polêmicas como acidentes, greves de funcionários, atrasos de pagamentos e, ultimamente, a mais complicada de todas: o impacto social negativo para as comunidades atingidas no entorno das obras.

AGRICULTOR QUE RECEBERÁ SÓ R$ 8,57 DE INDENIZAÇÃO

Manoel Firmo e esposa: menos de R$ 10 de indenização. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

Manoel Firmo Rodrigues, 50 anos, reside em uma simples casa do povoado Riacho do Meio, a 30 quilômetros de São Francisco de Assis. Ele mora no lugar desde pequeno. Na casinha residem o agricultor, a esposa e uma filha. Ele nunca viu um trem na vida e não sabe direito para que serve uma ferrovia, mas desde 2009 sabe que “essa tal de Transnordestina”, como chama a obra, passará quase em frente à sua casa.

Ele é um dos moradores da região prejudicados pelas edificações. Tornou-se conhecido entre todos que atuam na luta sobre os prejuízos da ferrovia justamente por ter o direito de receber apenas R$ 8,57 de indenização.

Marcação errada teria gerado confusão em pagamento de indenização. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

Manoel Rodrigues diz ter um terreno de três hectares, todo cercado com arames de oito fios, prejudicado pela ferrovia.

Em 2009 diz ter recebido os laudos de que a Transnordestina passaria sobre suas terras e não entendeu muito o que era um laudo. Ficou um pouco contente ao saber que seria indenizado. Mas quando veio a notícia de que seria menos de R$ 10,00 tomou um susto. “Disseram que era porque pegou apenas 842 metros de minha propriedade. Mas esse trecho de terra que dizem no laudo nem é meu. O meu é muito maior e é do outro lado”, declarou, mostrando a estaca de concreto fincado em sua terra.

Mas, pior do que perder as terras e não ser indenizado é não ter água. O poço da comunidade em que vive Manoel Rodrigues e mais outras 40 famílias foi aterrado pela ferrovia. Só sobrou a caixa d´água. Até que a empresa Civilport, responsável pelo trecho, cavou outro poço, mas a nova obra está com problemas e, sem energia elétrica nas proximidades. Sem água fez com que os moradores da região agora tenham de caminhar diariamente até dois quilômetros para poder ter água em outro poço.

SEM ÁGUA E SEM COMO PEGAR O PRECIOSO LÍQUIDO

Com ferrovia passando de lado população não terá mais acesso a barreiro. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

Outro grave problema vivido por muitos moradores do Sertão do Piauí envolvidos com a Transnordestina é sobre a fonte de recursos de água. Além do poço da comunidade Riacho do Meio, outras comunidades também foram atingidas em São Francisco de Assis do Piauí.

O agricultor Silvino Marcelino de Sousa terá a ferrovia passando 30 metros na porta de casa. Com problemas de depressão depois do início da obra diz não querer a nova casa oferecida para morar. “Aqui é o meu lugar. Nasci e fui criado aqui”, enfatizou. Ele também alega que o barreiro (espécie de mini-barragem para acúmulo de água) construído por ele foi aterrado pela ferrovia.

Agricultor prejudicado conversa com autoridades eclesiais. Cerca da Transnordestina. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

O agricultor Francisco João de Sousa ganhou uma casa nova da Fraternidade São Francisco. Ele e vários parentes foram prejudicados com a impossibilidade de não poderem mais pegar água em outro barreiro construído por eles mesmos há mais de 20 anos. A mini-barragem era a única fonte de água em quilômetros e com a ferrovia não pode mais passar de um lado para o outro, já que todo o trecho em que passarão os trens será cercado.

Apesar da promessa da empresa que constrói a ferrovia possibilitar pontos de passagem de três em três quilômetros, em alguns pontos, por causa de túneis e escavações de até 18 metros de fundura (para nivelamento dos futuros trilhos) será impossível os moradores passarem com carroças de burro com tambores, essenciais para o transporte de água.

TERRAS CORTADAS AO MEIO. CASAS DE UM LADO, PLANTAÇÕES DE OUTRO. DESVIO DE QUASE DEZ QUILÔMETROS ATÉ PARA TRANSPORTE ESCOLAR

Transnordestina e terras de São Francisco de Assis do Piauí. Divisão. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

Um dos principais problemas da Transnordestina é a divisão de terras. A justificativa é que a ferrovia tem de seguir um traçado pré-determinado, pois não pode fazer curvas com acentuação e muito menos passar por ladeiras, por isso a invasão de terrenos.

Esse problema terminou por cortar terras ao meio. Uma delas é do agricultor Luís Josias Gomes, 50 anos, morador da localidade Curralinhos (a 28 quilômetros de São Francisco de Assis do Piauí). Ele disse ter uma área de sete hectares cortada ao meio. “Acabou tudo e não está dando para plantar mais nada”, frisou, ao dizer que anualmente tirava boas safras de feijão, arroz e milho.

Poço foi destruído por obras da ferrovia. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

Em novembro do ano passado foi oferecido uma indenização de R$ 8.000,00 mas ele disse que esse valor não paga nem a cerca. “Aqui vale para mais de R$ 30.000,00”, reivindicou.

O agricultor Silvino Marcelino de Sousa, 38 anos, terá de caminhar até oito quilômetros para poder passar para suas terras de um lado para o outro.

Um outro grave problema vivido pelos moradores de São Francisco de Assis é sobre o transporte escolar. Para os ônibus que realizam o transporte de crianças e adolescentes chegarem a alguns pontos precisam desviar até dez quilômetros por causa da rodovia e de suas passagens.

Em ações religiosas e políticas realizadas neste final de semana o bispo da Diocese de Oeiras, dom Juarez Sousa da Silva e o padre Geraldo Gereon, pároco de São Francisco de Asiss do Piauí defenderam maior atenção das autoridades para o caso.

INDENIZAÇÕES PARAM NA JUSTIÇA. ERROS GRAVES SÃO APONTADOS

A advogada Gismara Moura Santana foi contratada pela Fraternidade São Francisco para interceder junto à Justiça sobre os moradores prejudicados pela Transnordestina. Ela e quase outros dez advogados (contratados por outras instituições sociais e entidades classistas do Sertão do Piauí) defendem mais de 200 famílias prejudicadas pelas obras da ferrovia.

Gismara Santana aponta que em São Francisco de Assis do Piauí foram identificadas 48 famílias com pendências sobre a Transnordestina. Onze dessas são representadas por ela.

Fraternidade São Francisco mandou construir novos barreiros para sanar problemas enquanto indenizações não foram concedidas a sertanejos piauienses. Foto: Severino Carvalho/Serra FM

No início do ano foi dado entrada na Comarca de Conceição do Canindé (que abrange São Francisco de Assis do Piauí) para que o Governo do Estado do Piauí, responsável pelas indenizações às famílias, possa se pronunciar.

“Os valores das indenizações são insignificantes. Disseram que se basearam por vários dados de diversas entidades, mas vê se é correto pagarem menos de R$ 9,00? A maioria dos casos sequer paga os arames das cercas”, destacou a advogada.

Em muitos casos de indenizações da Transnordestina o Governo do Piauí já foi condenado a pagar, inclusive as revisões e alterações de valores. A maioria deles sequer a Procuradoria Geral do Estado recorreu ou terminou perdendo prazos. Em muitos outros as famílias aceitaram as indenizações mas não receberam os valores acordados. Os casos atualmente na Justiça são sobre os que não aceitaram os valores propostos ou não foram pagos.

Enquanto o trem não passa: os sertanejos continuam sofrendo mais e mais e já não bastava a falta de água, muitas vezes falta de energia elétrica, agora a impossibilidade de transitar em suas terras. O desenvolvimento quer passar, mas o respeito ao próximo também é muito importante.

Todos os moradores ouvidos não são contra a Transnordestina, mas disseram que ela tem de trazer desenvolvimento ao Piauí sem prejudica-los.

O Olho

Colaborou Severino Carvalho, da Rádio Comunitária Serra FM.

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