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Uma resposta ao ex-professor do Ifpi que pede às mulheres para pararem de exibir nádegas

A opinião, que pode parecer um delírio ou uma frase tirada do formol de algum jornal de 1950, é autêntica

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Todos os crimes que têm uma mulher como vítima, estupros e feminicídios, seriam resolvidos com o pudor feminino no modo de se vestir e se portar? Alguns homens pensam que sim, mas o que surpreende mesmo é que tenham a coragem de expor essa visão publicamente, sendo respaldados com espaço em um jornal de circulação estadual. A opinião, que pode parecer um delírio ou uma frase tirada do formol de algum jornal de 1950, é autêntica (por mais incrível que pareça) e foi publicada nesta sexta-feira (25/01) na sessão de artigos do jornal piauiense Diário do Povo. O texto, com o título “O pudor da mulher atrai o respeito do homem” é de autoria do cronista José Maria Vasconcelos, professor aposentado do Instituto Federal do Piauí (Ifpi).

Eu, Sávia Barreto, com pudor. E eu, Sávia Barreto, sem pudor: porque uma roupa não é capaz de colocar rótulos em ninguém. (Foto: Arquivo pessoal)

José Maria narra, como se isso fosse vantagem, que todas as sextas-feiras reúne-se com amigos na praça de alimentação do Teresina Shopping, em frente ao restaurante Magia de Minas. Ele e os amigos chamam o local de “Contemplatório”, porque é lá que ficam sentados vendo mulheres “desfilar, destilando colírio nos olhos masculinos devido à ousadia dos trajes”. Professor, as mulheres estão no shopping passeando, trabalhando, em meio a compromissos, num intervalo rápido para o almoço, no banco para pagar contas… seja lá o que essas mulheres estejam fazendo, com toda certeza, elas possuem uma vida e a vida delas não está, nem de longe, pautada em servir de objeto para cobiça sexual de senhores aposentados ou não cujo hobby, ao invés de algo que contribua minimamente com a sociedade, é sentar e julgar a vestimenta alheia, achando que a partir de um pedaço de pano podem mensurar o caráter de alguém.

O texto completo (que você lê na imagem abaixo) é recheado de julgamentos equivocados, mas entre os trechos mais gritantes está um lamento pela existência de delegacias da mulher (!!):

Fechem as delegacias da mulher, providenciem condutas de pudor feminino, vergonhas mais escondidas. Homens, comumente, só avançam se elas abrirem as pernas”.

A própria definição de estupro quer dizer um avanço sexual que não foi autorizado, é um “coito forçado ou violação é um tipo de agressão sexual geralmente envolvendo relação sexual ou outras formas de atos libidinosos realizado contra alguém”. E as maiores vítimas são crianças que com toda certeza “não abrem as pernas” para seus abusadores. Do total de 22.918 casos de estupro registrados pelo sistema de saúde em 2016, 50,9% foram cometidos contra crianças de até 13 anos. Os dados fazem parte do estudo Atlas da Violência 2018, apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Se as delegacias da mulher forem fechadas, homens deixarão de assassinar as mulheres com quem se relacionam apenas por ciúmes, como foi o caso da estudante piauiense Camilla Abreu, morta em 2017 pelo então namorado capitão da Polícia Militar, Allisson Watson? Sem delegacias da mulher, podemos dormir tranquilas com a convicção de que não teremos mais casos como o da cabeleireira Aretha Dantas Claro, de 32 anos, morta após ser esfaqueada e atropelada na Avenida Maranhão, no bairro Tabuleta, Zona Sul de Teresina, pelo ex-namorado, Paulo Neto, em 2018?

Creio, portanto, que o problema não sejam delegacias da mulher e sim homens que matam mulheres.

Outras pérolas de José Maria podem ser lidas a seguir:

“Acho que as mulheres devem voltar às origens de sua decência. Os homens, coitados, deixam de admirá-las porque elas não valorizam o pudor”.

“Homens, em geral, não avançam na mulher pudorosa, reservada e decentemente ajuizada, que não expõe a sua intimidade emocional e física. Em outras palavras, a mulher ideal não precisa exibir as nádegas para seduzir os homens”.

(Comentário: Ao contrário do “pensamento” acima, é fato que homens assediam até mulheres de burca. E a mulher que exibe as nádegas não quer, necessariamente, seduzir homem algum. Pode querer apenas se sentir bem consigo mesma e isso não é crime. Imputar ao outro carimbos tão rígidos baseados em gostos pessoais é perigoso e reforça o sexismo).

“Homens usam bermudas que escondem as nádegas e as coxas. Transmitem muito mais pudor que as mulheres de fios dentais, shortes cavados expondo as protuberâncias vaginais. Além dos decotes cobrindo apenas os mamilos”

(Comentário: Segue foto de um homem sem cobrir o mamilo e também sem bermuda. E agora, como hierarquizar pessoas com critérios absolutamente arbitrários e equivocados?)

Cristiano Ronaldo, jogador de futebol, expõe os mamilos e o corpo sem bermuda. E agora, José?
Cristiano Ronaldo, jogador de futebol, expõe os mamilos e o corpo sem bermuda. E agora, José?

MULHERES NÃO SOFREM VIOLÊNCIA POR USAR ROUPA CURTA

Vivemos em uma sociedade tão permeada pela desigualdade de gênero, que um jornal de circulação estadual e um professor – cuja função teoricamente é ensinar e contribuir para tornar o mundo um lugar melhor – sentem-se à vontade para publicar exortações contra o livre direito das mulheres de vestirem-se e agirem como quiserem.

O jornal Diário do Povo errou em publicar o artigo sem ter nenhum tipo de filtro ético (e lógico) para barrar opiniões que defendem o indefensável. E José Maria errou em não compreender que o mundo mudou. Seu esquema de causa-consequência está completamente deturpado.

As mulheres não sofrem violência porque se vestem com roupa curta. Elas sofrem violência porque, como lembra a escritora, educadora e ativista social estadunidense Bell Hooks, os “homens como grupos são os que mais se beneficiaram e se beneficiam do patriarcado, do pressuposto de que são superiores às mulheres e deveriam nos controlar. Mas esses benefícios tinham um preço. Em troca de todas as delícias que os homens recebem do patriarcado, é exigido que dominem as mulheres, que nos explorem e oprimam, fazendo uso de violência, se precisarem, para manter o patriarcado intacto” – trecho é do livro “O feminismo é para todo mundo, publicado pela editora Rosa dos Campos em 2018, cuja leitura, leve e didática, é a introdução ideal para quem quer entender de feminismo sem superficialidade ou afetação.

O mundo ideal para alguns homens é aquele em que não há delegacias da mulher para onde os casos de violência sejam denunciados e onde todas as mulheres estão cobertas da cabeça aos pés, escondendo o corpo do desejo masculino. Esse planeta hoje surreal já existiu, inclusive, mas no passado. Há décadas, as mulheres vestiam-se com “pudor”, eram espancadas pelos maridos e não tinham nenhum tipo de proteção legal contra violência física e psicológica.

Apenas nos últimos 50 anos, na esteira dos movimentos sociais e feministas, mudanças começaram a ocorrer permitindo às mulheres um acesso amplo à escolarização e aos mesmos direitos que os homens. Apesar disso, ainda vivemos num mundo em que a melhor mulher ainda tem menos poder que o pior dos homens. Os conservadores seguem vendo a diferença como hierarquia e atribuem características intrinsecamente femininas ou masculinas de acordo com o sexo para encaixar sujeitos em padrões que os privam de uma liberdade de ser e agir na vida em sociedade. Como diz o cartaz abaixo, de uma mulher numa caminhada sobre direitos femininos: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente com a roupa que eu escolhi e poder me assegurar: de burca ou de shortinho todos vão me respeitar”.

Sávia Barreto
Oito Meida

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