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A violência contra a mulher não rouba apenas vidas

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Por Maria de Fátima Jacinto

Violência contra a mulher
Imagem Ilustrativa

A violência contra a mulher não rouba apenas vidas, ela mata as palavras, sequestra a mulher e aniquila os laços sociais e emocionais

No plano social, a passagem ao ato costuma ser um recurso freqüente em sociedades que vivem sob o jugo da repressão – qualquer que seja seu tipo. A exclusão implica a perda da capacidade de se fazer ouvir, o fechamento de todos os veículos de expressão de anseios, demandas etc., o que não raro desencadeia formas violentas de reação.

[ad#336×280]Como não podemos mais confiar nas estruturas e instituições que nos amparam somos lançadas em nosso desamparo e, aparentemente, reduzidas à materialidade da vida biológica – a vida nua. O nosso lar que deveria ser: “lugar em que o viver deve se transformar no viver bem”, no entanto, cada vez mais, torna-se um lugar de perigo, de ameaças, de território conflagrado.

Com freqüência, o medo ou a experiência de vitimização – direta ou indireta – levam as mulheres a adotarem medidas de auto-proteção que as distanciam da sociedade. Ou seja, reduzem o uso dos espaços públicos, o contato com vizinhos e parentes, vivendo o que chamamos de confinamento.

Tais reações poderiam ser entendidas como um grito um apelo ao reconhecimento do outro. Um grito que clama pelo direito de fazer ouvir – de se permitir existir, de se fazer ver!

Mas de que forma vemos o outro? É no reconhecimento da alteridade que podemos estabelecer os laços sociais e a solidariedade. Diferença e singularidade são pressupostos para a existência do laço social cujo traço identitário não seja o narcisismo. Em outras palavras, o registro das culturas narcísicas tudo é permitido ao sujeito que se crê o centro do universo -, em sua onipotência predatória o outro é apenas um objeto para usufruto de seu próprio gozo. Na medida em que o seu companheiro a delineia apenas como objeto de seu próprio gozo, está é reduzida a um fetiche.

Isto traz conseqüências diretas na sua relação com a lei. O reconhecimento da lei pressupõe o reconhecimento da alteridade e da singularidade. Pressupõe, igualmente, que a lei deva ser justa, ter uma equivalência simbólica e, sobretudo, a todos se aplicar.

Ao contrário dos países europeus e mesmo dos Estados Unidos, no Brasil lei e práticas sociais de justiça não caminham juntas. A lei é letra morta, instrumento de vingança (aos amigos tudo, aos inimigos a lei) e aplicável somente às “classes perigosas”. Existe na sociedade brasileira um imenso intervalo entre o registro simbólico da lei e o funcionamento normativo da justiça. Por esta razão podemos afirmar que a concepção simbólica da lei não pode se restringir aos processos linguísticos, mas tem de ser necessariamente relançada nos campos social e político de forma que a economia política dos bens e valores possa estar entrelaçada com a economia psíquica das pulsões, desejos e demandas dos diferentes atores sociais.

Neste sentido, podemos perceber como as subjetividades em nossa cultura são freqüentemente relançadas ao agressor. Desta forma, nada impede que a vitima seja instrumento de puro gozo para um eu obeso, que institui como forma de existência o uso e usufruto dos bens e do corpo da vitima, esvaziando os valores que circulam no espaço.

Se pela ótica da elite podemos falar de uma cultura narcísica, que redunda em uma estetização da existência, tendo a perversão como seu modo de funcionamento princeps, nas chamadas classes populares assistimos a um aumento gradativo da violência, tanto em sua freqüência quanto em suas diferentes formas de manifestação. Ou seja, há um enorme vácuo conforme afirmamos anteriormente entre a ordem simbólica da lei e as práticas sociais do dispositivo da justiça. “Uma coisa é se falar de crime, e até de violência, outra é falar de crueldade. Claro que a crueldade é uma modalidade da violência, mas o crime não necessariamente envolve a crueldade”.

Mas não é dessa economia da sobrevivência, da reparação ou da redistribuição que se trata. Há aí um ódio anímico de outro tipo. Algo se partiu no interior de alguém quando este indivíduo é capaz de lidar com a vida humana da forma pela qual alguns desses agressores, que são filhos e herdeiros da mesma tragédia, são capazes.
“Estamos diante de um grande desafio de ordem psicológica, psicanalítica, espiritual, cultural. Um grande desafio para todos nós: do que é capaz um ser humano?”.

Penso que devemos retornar aos dois pólos possíveis de estruturação de nossa vida psíquica e social. O desejo somente é possível quando nos voltamos para o registro alteritário. A condição de possibilidade do desejo é que a vitima se apresente como algo sedutor capaz de despertar a capacidade desejante do agressor.

Quando este se apresenta como impossível, o corpo da vitima é apenas o lugar da descarga pulsional voraz, tomado como um objeto, fonte de afirmação predatória de seu auto centramento. Para além do respeito à diferença podemos nos defrontar com a total indiferença ao outro, que sequer existe enquanto registro alteritário. Por esta razão, a violência contra a mulher implica não apenas sua dominação como também um ataque ou dano em sua capacidade de pensar.

Todos queremos ser, desejar existir é força fundante do ser humano. Ser alguém e ser para alguém são variações possíveis de uma existência que só se realiza num olhar, num gesto, numa palavra dirigida que dá a quem quer ser a certeza de que ele existe, de que tem um lugar de referência. Pertencer a algum lugar constitui-se uma abertura para o ser no mundo. Ser de algum lugar.
A existência, o sentir-se existindo impõe-se ao sujeito. Então podemos pensar sobre como alguém se sente existindo numa condição ou situação em que o existir passa desapercebido. Como é se sentir existindo quando se é ou está invisível? O que é a invisibilidade? Por que isto se apresenta como uma questão atual?

Ação e discurso são as únicas formas que os homens têm para mostrar quem são, para revelar ativamente suas identidades pessoais e singulares, para revelar o “quem” em contraposição ao “o que” alguém é “Através deles – da ação e do discurso – os homens podem distinguir-se, em vez de permanecerem apenas diferentes; a ação e o discurso são os modos como os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens”.

Existir é, antes de tudo, apresentar a própria imagem para o Outro. O que equivale a dizer, para um adulto que já tenha ultrapassado as fronteiras dos complexos familiares, que existir é apresentar a própria imagem no espaço público. É no espaço público que o sujeito atesta que sua existência faz alguma diferença. Assim sendo, já não se trata apenas de exibir uma bela figura para deleite do outro, como um dia a criança se ofereceu à contemplação apaixonada da mãe. Se o espaço público é onde se estabelecem – e onde se desestabilizam – as relações de poder, ele não se constrói com belas imagens, mas com a imagem dos homens em ação. A visibilidade dos homens no espaço público depende da ação.

Quando não se vê algo, esse algo não existe “ser é ser percebido”. Mas ser é, antes de tudo, ser para alguém. Ver e ser visto são duas faces da mesma moeda nos encontros humanos. Não ser visto significa não participar, não fazer parte, estar fora, tornar-se estranho. O sentimento de não pertencer, de estar fora, costuma ser doloroso. Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.

Da estranheza ao temor, da curiosidade ao medo, do amor ao ódio, o rosto da violência nos força a manifestar a maneira secreta que temos de encarar o mundo, de nos desfigurarmos todos até nas comunidades mais familiares, mais fechadas. Ao criarmos imagens, sobre o eu e sobre o outro, criamos, muitas vezes, uma fantasia sobre o agressor que deve ser temido por ser estranho diferente. A rejeição a um determinado modelo, que se baseia em ideologias, de forma, cor, carregada não apenas das cores da humilhação, mas também da futilidade do ato.

Como um estupro da alma, ninguém nos vê e, entretanto, sentimo-nos dissecadas e ressecadas pelos outros, a invisibilidade não se constitui um fenômeno óptico. A invisibilidade é a forma mais aterrorizante de nos sentirmos visíveis. Sabemos que estamos ali, é fato, mas há uma espécie de desaparecimento de uma pessoa no meio de outras pessoas.

Viver na sombra dos movimentos: não conseguir se enxergar com movimento próprio, potência própria, importância, existência própria. Sentir-se invisível traz sofrimento a vitima.

A invisibilidade pública é a expressão pontiaguda de dois fenômenos psicossociais que assumem caráter crônico nas sociedades: humilhação e reificação, A humilhação apresenta – se como um fenômeno histórico, construído e reconstruído ao longo de muitos séculos, e determinante no cotidiano das mulheres de todas as classes. Um Ser só acontece decisivamente a partir do olhar do outro. Somente assim é que o Ser pode, realmente, assumir sua própria existência. O Ser nasce e morre pelos olhos do outro: a qualidade do olhar que nos é dirigido constitui – se como espelho verdadeiro ou deformador. Aí, afinal, definem-se lugares nossos lugares mais ou menos autênticos, lugares mais ou menos aprisionadores.

A identidade só existe no espelho e este espelho é o olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura da significação humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio.

Nós nada somos ou valemos se não contarmos com o olhar alheio acolhedor, se não formos vistos, se o olhar do outro não nos recolher e salvar da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que, portanto, é sinônimo de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e de valor.

Lamentavelmente, este não é um fato novo. Freud assinala como a intolerância se manifesta muito mais no tocante às pequenas diferenças do que nas divergências fundamentais – o ódio ao “quase semelhante”. Neste caso, o ódio encontra seu objeto precisamente no campo do próximo, do semelhante – o próximo que somos supostos amar como nos ensina o mandamento: amarás o próximo como a ti mesmo.

Freud nos ensina ainda que a ausência de uma instância legal e justa que lhe sirva de proteção contra a anomia reenvia o sujeito ao desamparo e ao pavor, justamente pela falta desta autoridade simbólica. Desse modo, as relações entre os diferentes são atravessadas pela desconfiança e o temor ao outro. Conseqüentemente, os canais de comunicação e os espaços de convivência se tornam ainda menores, aprofundando a incomunicabilidade entre eles.

É neste cenário que observamos o uso predatório do corpo da vitima, instrumento de puro gozo, de perversão narcísica. Somos assim lançadas em nosso desamparo e, aparentemente, reduzidas à materialidade da vida biológica – a vida nua.

Sem esta dimensão de filiação, é muito difícil de afirmar uma identidade e o que aguarda é um destino de, pelo menos, muito sofrimento. Acreditamos que em tais situações poderíamos pensar na saída pela violência como uma marca que permite a vitima emergir de um lugar não escolhido por ela, à procura de uma filiação e reconhecimento – um lugar que a rejeitou.
Nestas configurações, não se trata de negar a existência do outro, mas sim de lhe negar qualquer valor.

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